As mães e as bruxas
Imagem do site www.marthadebayle.com
Era o tempo da inquisição e as
mulheres consideradas bruxas eram queimadas em praça pública. Felizmente, já lá
não estamos. Mas ainda há pecados que parecem inadmissíveis e impossíveis de
confessar. E que se apontam aos outros. Às outras, neste caso. São as más mães.
As más mães são queimadas na praça pública das conversas entre vizinhas, entre
as outras mães das escolas dos filhos, entre os familiares que metem o bedelho,
porque toda a gente sabe como se devem educar as crianças dos outros. Ai se
fosse meu filho…
Imagino que em casa de quem
aponta o dedo, as mães têm sempre tempo para os filhos, nunca perdem a
paciência, o jantar está sempre pronto a horas e as refeições são passadas em
harmonia. Claro que a casa está limpa, a roupa passada, há tempo para brincar
com os filhos, e ainda para estar a par das notícias, tratar das unhas, e
namorar com o marido. E ter um emprego. E vida social. As regras ensinam-se com
carinho e as crianças são perfeitas. E nunca, mas nunca, os pais discutem à
frente dos filhos.
“Se me ouvissem dizer isto…” - deu
uma palmada, cedeu à birra e comprou o brinquedo, perdeu a cabeça e desatou aos
gritos, sentiu alívio quando entregou a criança aos avós, teve inveja da amiga
sem filhos, deixou-o ver televisão só para descansar. A dor com que as mães se
confessam no consultório de psicologia é a dor de se sentirem más mães. Bruxas,
portanto. Que merecem ser queimadas vivas na praça. Como se fossem as únicas a
ter dúvidas, dificuldades, a gerir tudo e mais alguma coisa na senda de uma
perfeição que não existe. A sério, não existe mesmo.
Winnicott, importante pediatra e
psicanalista inglês que morreu em 1971, veio nos salvar a nós todas, mães
imperfeitas: ele inventou o conceito de “mãe suficientemente boa”. O que quer
isto dizer? Quando o bebé nasce, a mãe está num estado a que Winnicott chamou
de “preocupação materna primária”: a mãe está totalmente focada no seu bebé e
em satisfazer as suas necessidades. Com o crescimento do bebé, a mãe vai-se
voltando a focar noutros aspectos da vida e o bebé vai sendo capaz de tolerar a
frustração que isso acarreta. É esta adaptação na “falha” da mãe que permite o
desenvolvimento do bebé. Portanto, é na dança entre o dar e o frustrar, na
medida certa, que os pais fazem as crianças crescerem saudáveis. Quando tudo
corre bem esta dança dá-se de forma natural, sem se ter de pensar nisso.
Winnicott enumera algumas condições: a saúde física da mãe e do bebé, um parto
não traumático, uma amamentação tranquila e pouco stress vindo do ambiente.
Mas nem sempre tudo corre bem. E
a quem se apontam os dedos? Às bruxas, quer dizer, às más mães. E esquecemo-nos
de que as mães precisam muitas vezes de suporte para cumprirem a sua função de
mãe. E de que além de serem mães são mulheres, seres humanos, com todas as suas
diversas funções e toda a sua imensa complexidade. Mães em situação de
fragilidade têm a sua função materna dificultada. E ainda têm os dedos
apontados. Mesmo que sejam dedos silenciosos, ou até que estejam apenas dentro
das suas cabeças. O suporte à maternidade deve ser função de todos: a começar
na organização da sociedade (cuidados de saúde, protecção no emprego, rede de
apoio à infância), passando pela organização familiar e da rede de relações
pessoais e, quando necessário, por apoios especializados de qualidade e
acessíveis.
E como é isto tudo com os pais? É
muito parecido. Só que, ainda assim, um bocadinho menos.
Artigo publicado no jornal A Voz do Operário (Março de 2017)
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