A cama dos pais - parte I

Pintura de Safet Zec

Toda a gente tem uma opinião. Além da opinião, muita gente tem filhos e os filhos são todos diferentes, mesmo os dos mesmos pais. A uns (pais) sabe melhor ter os filhos na cama, a outros pior. Mas o que me traz a escrever sobre este tema é que, a meu ver, falta informação a esta discussão. 

Não quero vir trazer nem receitas, nem manuais, nem dizer o que está certo e errado. Pretendo tentar esclarecer porque os psicólogos e os pediatras falam do marco dos seis meses, o que acontece antes e depois, e esperar poder contribuir para que cada um, pai e mãe, possa decidir.

Comecemos pelo início, então.

O bebé nasce. Nasce biologicamente no momento do parto, momento em que pode viver fisicamente separado da sua mãe biológica. Mas o ser humano que ali nasceu ainda não o é no pleno sentido do ser psicológico. Ou seja, o bebé nasce mas não sabe que nasceu, não sabe que existe, que tem uma pele que o separa do mundo e dos outros. Nasce num estado a que diferentes autores dão diferentes nomes, mas que caracterizam a indiferenciação entre o Eu e o não-Eu.

Freud chama-lhe o estado autístico inicial do bebé, termo também utilizado por Mahler e outros autores - fase autística normal; Spitz chama-lhe estádio pré-objectal (ou seja, antes da relação com um objecto externo a si); Klein fala da posição esquizo-paranóide (esquizo porque fragmentada); Winnicott fala do estado de não integração primária; Hartman chama-lhe fase indiferenciada. 

Nesta fase o choro do bebé tem função comunicativa, mas não tem intenção comunicativa. Ou seja, a mãe ouve o choro e responde a ele, mas o bebé não chora para a mãe vir, porque ele ainda não sabe que ele próprio nem a mãe existem. Está num estado de confusão, como se na sua mente fosse um líquido dentro de um líquido. Os cuidados que recebe não são ainda percepcionados como vindos do exterior, mas como se fossem criados automaticamente pelo próprio sentimento da necessidade. O bebé sente o desconforto da fome e surge um mamilo (ou tetina) na sua boca que o preenche do alimento que ele precisa. É a isto que os autores chamam experiência de omnipotência -  o bebé sente que cria a realidade de que precisa para sobreviver e sentir-se bem. 

É a mãe (ou o adulto que cumpre as funções maternas) que vai emprestar um "sentimento de ser" ao bebé e assim ajudá-lo a construir o seu Eu. Através do que Winnicott chamou o holding - os cuidados da mãe, o toque físico, o colo, a satisfação das necessidades, as experiências que se repetem - que se começa a unir num estado sólido o que estava líquido, a formar uma pele psicológica que, ao ser tocada e acarinhada, passa a existir e a separar o bebé do mundo. 

Mas são também as falhas normais da mãe que possibilitam a criação da noção de Eu. Quando o bebé nasce a mãe está permanentemente focada em satisfazer as suas necessidades. Essa capacidade materna é essencial para a base da construção psíquica. Mas esse estado de "perfeição", de dependência absoluta do bebé, não pode ser mantido para sempre. A mãe começa a demorar um pouco mais a chegar ao berço quando o bebé chora, por exemplo. Essa frustração momentânea ajuda o bebé a perceber a mãe como ser separado de si. E a criar a intenção de a chamar para perto de si. 

A mãe que não responde às necessidades primárias do recém-nascido, não lhe permite construir um Eu seguro, pois este está sempre ameaçado pela iminência de morte e, nesse estado, defende-se da angústia mantendo-se desintegrado e não uno. A mãe que, passado o estado de recém-nascido, continua a responder às necessidades do bebé de forma perfeita, mantém-no num estado de contínua dependência, sem possibilidade de autonomização. Aquilo a que Winnicott chama "mãe suficientemente boa" é a mãe que se adequa às necessidades do bebé, mas também e gradualmente às suas, dando a segurança de base e o espaço ao crescimento. 

No próximo texto, avançamos até aos seis meses. 

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