A cama dos pais - parte II

In Bed de Claude Le Boul - oil on canvas

Na parte I falei de como se caracteriza psicologicamente o recém-nascido, num estado de pré-existência psíquica, ainda sem se diferenciar do mundo e dos outros.

Até aproximadamente aos 6 meses de idade, o bebé apenas foi capaz de se relacionar com o que Spitz chama de pré-objectos - a mãe não é uma entidade inteira, é a mãe boa que sacia as necessidades e a mãe má que as frustra. Klein chama a isto, simbolicamente, o seio bom e o seio mau. O bebé, ainda não sendo um Eu psíquico uno, também ainda não consegue integrar as experiências de prazer e desprazer num objecto exterior único. Com a repetição das experiências, estas começam a ser integradas através da memória, e o bebé começa a conseguir integrar os pré-objectos bons e maus e constituir uma imagem de mãe una - boa e má ao mesmo tempo. É aqui que o bebé começa de facto a relacionar-se, pois já se sente um Eu diferenciado do exterior - só na existência de um Eu e um Tu pode haver verdadeira relação. Mahler chama a este processo de separação-individuação. 

Esta nova capacidade de relação traz novos desafios. Nela estão sentimentos ambivalentes, de amor e de agressividade, para as partes boas e más da mãe. E, consequentemente, o medo do abandono (ou em linguagem psicanalítica, de perda do objecto). Klein chama a este processo a posição depressiva - o bebé consegue agora perceber a mãe como pessoa inteira, e sentir-se dependente dela. Segundo a autora, como o bebé tem sentimentos ambivalentes de amor e agressividade em relação à mãe, teme destruí-la pela sua agressividade, gerando sentimentos de culpabilidade. Todas as vezes que a mãe desaparece e reaparece, reforça a ideia de que não será destruída pelos movimentos agressivos do bebé, e essa repetição gera sentimentos de segurança. Mais uma vez, são as frustrações em medida certa que ajudam ao crescimento psíquico. É na ausência que se cria a imagem interna de um objecto relacional seguro, que aguenta os movimentos agressivos sem se deixar destruir e sem parar de amar, de cuidar, de dar segurança e afecto positivo. É também na ausência que se cria o sentimento de desejo, como refere Winnicott, e a consequente possibilidade de o demonstrar. 

Quando o bebé já conseguiu interiorizar a mãe, ou seja, ter uma ideia da mãe dentro de si, é que consegue suportar a solidão. O objecto não se perde por desaparecer, há a segurança de que ele existe e irá voltar. 

Um dos comportamentos observáveis nesta fase é a chamada angústia do estranho, ou angústia do 8º mês. É a altura em que o bebé não quer ir para o colo de quem não conhece bem, que vira a cara quando estranhos interagem com ele, que pode chorar e desorganizar-se se essa interacção é forçada. O contacto com o rosto de um estranho faz o bebé sentir-se separado, e portanto abandonado pela mãe. Outro, é o prazer nos jogos de cu-cu ou no esconder e descobrir o brinquedo. Cada uma destas brincadeiras reforça a ideia de que o objecto não desaparece quando está fora da vista, tem existência própria para além da acção do bebé. 

A cama dos pais representa simbolicamente o estádio fusional do início da vida do recém-nascido. Embora fora do útero, o corpo da mãe continua a ser em parte a sua casa. É onde encontra o colo, o contacto da pele, o cheiro que conhece, a mama que alimenta, o calor que aconchega. Por muito bem que isto soe a nós que somos adultos, plenamente diferenciados e com Eus bem construídos, ficar parado neste estádio de fusão e indiferenciação é o correspondente às doenças mentais mais graves nos adultos. Só podemos sentir o prazer da partilha íntima enquanto adultos porque nos deram a oportunidade de nos diferenciarmos, de nos constituirmos como Eus unos e separados, e de aprendermos a nos relacionar com outros através da autonomia e não da dependência simbiótica. 

Quando pediatras e psicólogos aconselham a mudar a criança para o seu quarto antes dos 6 meses de idade, baseiam-se nestas teorias desenvolvidas durante anos por um grande número de autores, construídas através da observação de bebés, de interacções de díades mãe-bebé, e de processos psicoterapêuticos de adultos que manifestam falhas que remontam a períodos precoces das suas vidas. Mudar o bebé de quarto quando ele começa a organizar-se na posição depressiva, é tornar a sua tarefa de desenvolvimento psíquico mais difícil. Dito isto, é importante lembrar que todo o desenvolvimento se dá em avanços e recuos, não é uma linha recta. O facto de Klein ter abandonado a ideia de Freud de "fase" e ter optado pela de "posição" reflecte a ideia de que um processo de crescimento (ou estaganção) psíquico pode ser retomado em várias fases diferentes da vida. 

Mas fica a pergunta - então porque não esperar até a criança ser mais velha? Será o tema do próximo texto. 

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