Boundaries I

Foto de Weather Witten


A polémica estalou quando o facebook censurou a publicação desta foto. Aparentemente houve reacções de choque. O que veio a seguir foram as reacções de apoio. Não contarei a história, que podem ler nos links, mas resumidamente, um pai tenta consolar o seu filho doente, com diarreia, vómitos e febre persistentes, e a mãe fotografa e publica no seu facebook.




Reprodução The Barefoot Mum - foto de Kelli Banister


http://www.paisefilhos.com.br/pais/foto-e-desabafo-viralizam-ao-mostrar-um-dos-lados-dificeis-da-maternidade/



Um cenário semelhante, mas aqui uma mãe com a sua filha doente, a foto é tirada pelo filho de 5 anos e a mãe publica no seu facebook. A empresa não censura, os comentários são todos de apoio.

Tanta coisa para reflectir...

A primeira, a nossa reacção instintiva diferente às duas fotos.

A foto da mãe "encaixa" automaticamente, a do pai leva um momento. Os relatos contam que na foto do pai houve quem visse pedofilia (coisa que não acontece na da mãe). As imensas reacções de apoio à publicação, com repetidas afirmações de que retrata um momento terno de amor, de cuidado, da paternidade no seu esplendor, me dizem que, se algo precisa ser tão fervorosamente defendido, é porque evoca coisas indefensáveis. Na segunda foto a bebé parece pertencer àquele colo, a sua mão repousa na mama que a alimenta ou alimentou, todo o corpo da mãe envolve, relembrando um passado não tão longínquo em que a existência era dentro do corpo da mãe. Na primeira foto o corpo do pai envolve também. Em ambas, a vulnerabilidade da nudez, da pele com pele, do chuveiro, da doença. O momento de crise, de dificuldade e de amor incondicional, captado e partilhado com o mundo. No masculino, e no feminino. Quais as diferenças, então? Porque uma parece evocar violação e violência e outra protecção e amor?

Num mundo a preto e branco o corpo do homem serve para trabalhar e foder, e o corpo da mulher serve para cuidar e gerar filhos. Nesse mundo a preto e branco as crianças são do domínio feminino até à idade em que precisam ser disciplinadas, e aí o pai castiga, pune e exige obediência. O corpo do pai agride e o da mãe dá colo. Mas o mundo não é a preto e branco, e, felizmente, cada vez o é menos. Será que as reacções diferentes a estas fotos carregam este pesado fardo do passado? Lembro-me da recente polémica norte-americana sobre a utilização de casas de banho públicas por trans-sexuais. Não me vou pronunciar sobre a absurda violência que a proposta inflige a estas pessoas (e com isto já me pronunciei), mas à ideia subjacente: um homem adulto na mesma casa de banho que uma menina é perigoso - os homens são perigosos, os seus impulsos sexuais imensos e incontroláveis, é preciso proteger mulheres e crianças.

Esta ideia é, em si, perigosa. Viver num mundo em que a outra metade da população, ou aquela de que faço parte, é perigosa, é viver num mundo assustador. Se o mundo é perigoso, tenho de me defender, uso as armas que tenho à mão, agrido antes de ser agredido, vivo em medo, não saias sozinha, é melhor ser o primeiro a bater, só ganham os fortes, não chores, vai à luta, o mundo é dos vencedores, dos fracos não reza a história.

A violência existe, mas o amor também. O movimento feminista não veio trazer só mais direitos às mulheres, tem trazido também direitos aos homens: o direito à vulnerabilidade e à força do sentir e fazer amor, o direito a ser "mãe" com os seus filhos, o direito a escolher ouvir o seu lado feminino, sem que com isso seja desvalorizado. A ideia de que um corpo masculino, com as suas formas, a sua força, os seus pêlos e o seu pénis, só serve para agredir é retirar desse corpo a capacidade de amar, de cuidar, de se eternecer, de ser segurança e abrigo... de ser gente. E só homens (e mulheres) muito perturbados, confundem amor com agressão e sexualidade adulta com infância.

A fronteira entre o masculino e o feminino não se vai esbater com a facilidade com que alguns se apoquentam. Ela existe e continua a ser a base biológica da manutenção da maioria das espécies. Na complexidade humana, e com tantas oportunidades de explorar as faces masculinas e femininas dentro de cada homem e de cada mulher, os dois lados da identidade de género continuam a existir. As crianças continuam a precisar de dois para se criarem (seja em presença física ou evocada), continuam a precisar do feminino e do masculino para organizarem a sua personalidade (ou seja, das faces femininas e masculinas que existem no pai e na mãe, ou nos dois pais, ou nas duas mães). O mundo continua a precisar de diferença para avançar. Mas tal como nos vasos comunicantes, o fluir da diferença só se dá quando a ponte entre os diferentes está aberta. E diferentemente dos vasos comunicantes, esse fluir não se esgota nem anula a diferença, antes se recria a cada época, a cada rasgo de rebeldia que põe mulheres a tocar bateria nas bandas de rock ou em posições de chefia e homens a pintar os olhos e as unhas ou a cuidar dos filhos.

As fotos são diferentes, sem dúvida. E ao mesmo tempo são tão iguais. Porque os humanos não são a preto e branco. Porque a maravilhosa complexidade nos traz oportunidades que a sociedade de hoje já permite viver. A homens e a mulheres.

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